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Comentário Exegético sobre os Textos Bíblicos da Festa da Exaltação da Santa Cruz (Ano B)

 


A Festa da Exaltação da Santa Cruz, celebrada em 14 de setembro, destaca a centralidade da cruz no mistério da salvação. Para a liturgia desta festa, os textos bíblicos selecionados proporcionam uma rica teologia da cruz, iluminando o paradoxo de que a morte de Cristo na cruz traz a vida eterna para a humanidade. A escolha das leituras para o Ano B — Números 21,4-9 (Primeira Leitura), Salmo 77(78), Filipenses 2,6-11 (Segunda Leitura) e João 3,13-17 (Evangelho) — revela o desenvolvimento progressivo da compreensão teológica da cruz, desde o Antigo Testamento até sua plenitude no Novo Testamento.


1. Comentário Exegético de Cada Texto

1.1. Números 21,4-9 — A Serpente de Bronze

O texto da primeira leitura, retirado do livro dos Números, narra um evento significativo durante a jornada do povo de Israel pelo deserto. Em sua peregrinação rumo à Terra Prometida, o povo, insatisfeito com as condições adversas, murmura contra Deus e Moisés, manifestando sua ingratidão e falta de confiança. Em resposta, Deus envia serpentes venenosas que, ao morderem as pessoas, provocam grande sofrimento e morte. No entanto, quando o povo se arrepende e clama por misericórdia, Deus ordena a Moisés que faça uma serpente de bronze e a erga sobre um poste. Aqueles que olharem para a serpente erguida serão curados e salvos da morte.

Contexto Histórico:

Este evento está inserido num contexto de desafios e provações enfrentados pelos israelitas em sua caminhada pelo deserto. A queixa constante do povo contra Deus e Moisés reflete sua frustração com as dificuldades do êxodo. A ação de Deus ao enviar as serpentes é uma manifestação de sua justiça diante da rebeldia, mas também da sua misericórdia, ao providenciar a cura por meio da serpente de bronze. Aqui, há uma ênfase em dois temas teológicos: a justiça de Deus, que responde ao pecado, e a misericórdia de Deus, que oferece um meio de cura.

Significado Teológico:

A serpente de bronze é paradoxal. O mesmo objeto que lembra a causa do sofrimento (a serpente venenosa) se torna o instrumento de cura. Isso aponta para uma dinâmica semelhante à cruz de Cristo: aquilo que foi sinal de maldição e morte (a crucificação) torna-se o instrumento de salvação. O gesto de "elevar" a serpente também prepara o caminho para a compreensão cristológica da elevação de Cristo na cruz, como veremos no Evangelho de João.


1.2. Salmo 77 (78) — Um Apelo à Memória da Fidelidade de Deus

O Salmo 77(78) é uma reflexão histórica sobre a infidelidade do povo de Israel e a fidelidade constante de Deus. Ele relembra os eventos no deserto, onde o povo de Deus repetidamente duvidou de Sua providência, mas, ainda assim, Deus permaneceu fiel e misericordioso.

Contexto Histórico:

Este salmo, conhecido como um "salmo de instrução", pertence a uma categoria de textos que visam ensinar as gerações futuras sobre a necessidade de confiar em Deus e ser obediente. Ele faz uma retrospectiva das experiências de Israel no deserto, que incluem episódios de rebeldia, mas também de graça divina.

Significado Teológico:

No contexto da Festa da Exaltação da Santa Cruz, o Salmo reflete sobre a ingratidão e a fragilidade humana em contraste com a fidelidade de Deus. O pecado do povo e a resposta misericordiosa de Deus, já refletida na serpente de bronze, são aprofundados aqui. O salmo nos lembra que, mesmo em meio à rebeldia e ao pecado, Deus não abandona Seu povo, mas age com compaixão.


1.3. Filipenses 2,6-11 — O Hino Cristológico: Humilhação e Exaltação de Cristo

A segunda leitura é um dos textos mais ricos do Novo Testamento, conhecido como o Hino Cristológico da Carta aos Filipenses. Neste hino, São Paulo expõe o caminho de Cristo, desde Sua encarnação até Sua morte na cruz, e Sua subsequente exaltação por Deus Pai.

Contexto Histórico:

A Carta aos Filipenses foi escrita por Paulo enquanto ele estava preso, dirigindo-se a uma comunidade que enfrentava provações. O hino provavelmente era uma fórmula litúrgica ou catequética usada pela comunidade cristã primitiva, que expressava a doutrina central da kenosis (auto-esvaziamento) de Cristo.

Estrutura e Teologia:

O hino tem duas partes principais:

  • Kenosis (v. 6-8): Jesus, sendo Deus, "não considerou o ser igual a Deus como algo a ser retido". Em vez disso, Ele se esvazia, assumindo a forma de servo, tornando-se humano e, obediente até a morte, aceita a morte de cruz. Aqui, Paulo descreve a profundidade da humildade e do sacrifício de Cristo.

  • Exaltação (v. 9-11): Por causa de Sua obediência até a morte, Deus O exalta soberanamente e Lhe confere o nome que está acima de todo nome, para que todos se prostrem diante de Jesus, proclamando-O como Senhor.

Significado Teológico:

Esse hino revela a dinâmica central da fé cristã: a humilhação de Cristo na cruz é seguida por Sua glorificação. A cruz, símbolo de humilhação e morte, se transforma no ponto culminante da exaltação e vitória de Cristo. Para os cristãos, isso significa que o caminho da glória passa pela cruz. O cristão é chamado a imitar essa atitude de Cristo, aceitando a cruz em sua vida com a certeza de que a glória virá através dela.


1.4. João 3,13-17 — A Elevação do Filho do Homem e o Amor de Deus

O Evangelho de João 3,13-17 apresenta uma conversa entre Jesus e Nicodemos, onde Jesus revela o mistério de Sua missão e o propósito de Sua elevação na cruz. Esta passagem contém a famosa afirmação de que "Deus amou tanto o mundo que deu o Seu Filho unigênito".

Contexto Literário:

Esta conversa ocorre durante o início do ministério de Jesus, quando Ele está instruindo Nicodemos, um fariseu e membro do Sinédrio. Nicodemos, apesar de ser uma autoridade religiosa, demonstra dificuldades em compreender a profundidade do que Jesus está ensinando sobre o novo nascimento em Deus.

Exegese:

  • João 3,13: Jesus começa falando de Sua origem celeste e de Sua missão: "Ninguém subiu ao céu, a não ser Aquele que desceu do céu". Isso destaca a singularidade de Jesus como o Filho de Deus que desce para trazer a salvação.

  • João 3,14-15: Aqui Jesus faz a referência direta ao evento da serpente de bronze no deserto: "Assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja levantado". Essa comparação ilumina a cruz como o meio pelo qual a salvação será alcançada. Aqueles que "olharem" para Cristo elevado (ou seja, crerem n'Ele) terão vida eterna.

  • João 3,16-17: A declaração mais famosa, "Deus amou tanto o mundo que deu o Seu Filho unigênito", é a síntese do Evangelho. A cruz é o maior sinal do amor de Deus pela humanidade. Ao invés de condenação, Cristo vem para salvar o mundo.

Significado Teológico:

A elevação de Jesus na cruz, assim como a serpente de bronze foi elevada, é o ponto central do mistério da salvação. A cruz, que representa morte, é transformada em fonte de vida eterna para aqueles que crêem. João destaca o amor incondicional de Deus e a universalidade da missão de Cristo: Ele foi enviado para salvar o mundo inteiro.


2. A Relação entre os Textos

Os textos bíblicos desta festa se relacionam em diversos níveis, formando um todo coeso em torno da temática da salvação através da cruz.

2.1. A Elevação como Símbolo de Cura e Salvação

Tanto em Números 21 quanto em João 3, vemos o tema da "elevação" como símbolo de cura e salvação. No Antigo Testamento, a serpente de bronze é elevada para curar aqueles que a olham com fé. No Novo Testamento, Jesus usa essa imagem para explicar que Sua elevação na cruz será o meio pelo qual todos os que olharem para Ele com fé serão salvos. A serpente de bronze no deserto prefigura a cruz de Cristo, mostrando que desde o Antigo Testamento Deus estava preparando Seu povo para o mistério da redenção.

2.2. O Paradoxo da Cruz: Humilhação e Exaltação

O hino cristológico de Filipenses amplifica o paradoxo presente tanto em Números quanto em João. A humilhação de Cristo na cruz, assim como a serpente era um símbolo de maldição, leva à Sua exaltação. Paulo destaca que a cruz não é o fim, mas o meio pelo qual Cristo é glorificado. A exaltação de Jesus ocorre porque Ele aceitou a cruz, a maior forma de humilhação. O caminho da salvação passa pelo paradoxo da cruz: o sofrimento e a morte trazem vida e vitória.

2.3. O Amor de Deus Manifestado na Cruz

A leitura do Evangelho de João aprofunda o significado da cruz como a maior demonstração do amor de Deus. "Deus amou tanto o mundo" — esse amor é a força motriz por trás do sacrifício de Jesus. Nos textos, a cruz não é apenas um evento histórico ou um símbolo, mas a ação de amor redentor de Deus pela humanidade. Em Filipenses, vemos como Cristo se entregou por amor, e em João, essa entrega é motivada pelo amor incondicional de Deus por todo o mundo.

Conclusão

Os textos bíblicos da Festa da Exaltação da Santa Cruz (Ano B) conduzem-nos a uma profunda meditação sobre o mistério da cruz. Desde a serpente de bronze no deserto, passando pelo hino cristológico de São Paulo, até a revelação do amor de Deus em Jesus Cristo no Evangelho de João, percebemos que a cruz é, ao mesmo tempo, símbolo de humilhação e glória, de morte e vida, de justiça e misericórdia. A cruz é o ponto de convergência do plano de salvação de Deus, e nesta festa, somos chamados a exaltar não apenas o instrumento da nossa redenção, mas o amor incondicional que Deus manifestou por nós através dela.